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Olhares sobre o olhar

Por Fernando Mendonça

Quando Danièlle Huillet fala sobre a capacidade que um suspiro tem de abarcar todo um romance, ou quando, no processo de edição fílmica, ela procura o movimento íntimo que nasce de um rosto, é reafirmada toda uma concepção de cinema que prioriza a dimensão do olhar, sua sensibilidade, sua maneira particular de encontrar o mundo e guardá-lo com um carinho próprio, nostálgico, vivo. Sob tais considerações encontramos a resistência de questionamentos que não abandonam a prática cinematográfica, seja na ordem imagética e final de um filme, no domínio autoral e criativo deste, ou mesmo no público que ele encontrará, naqueles que lhe concederão um olhar que não se diz último, mas prosseguidor de uma necessidade, de uma vontade pela sobrevivência.

No desejo de iluminar tais anseios, o ‘pertencimento’ surge como problema central do cinema. Seu deslocamento e desequilíbrio são o que permitem fazer de uma seleção de imagens a configuração de um mundo que se revela o mesmo e outro, um espaço em totalidade. Desde a criação do cinematógrafo, sob as experiências dos irmãos Lumière, estabelece-se um tipo de confronto, entre o mundo e a câmera, que se distancia completamente da apressada sensação de que enfim o mundo poderia ser capturado fidedignamente, pacificamente. Ao contrário, o que temos com os Lumière é a instauração de uma nova dúvida, uma abertura ao estético permeada pelo temor de um encantamento que não se permite pleno, estável.

Já não é possível falar de pertencer. O mundo em jogo altera o estatuto da posse, da condição primeira daquele que é dono, proprietário de algo físico. Com o cinema, o mundo perde a impressão de Continuar lendo

Coexistência e Transmutação: Resnais, Tarkovski.



Por Rodrigo Almeida

Não há dúvida de que poderia escrever (e não só eu) um ensaio inteiro, apenas sobre os travellings paralelos em O Ano Passado em Marienbad (França / Itália, 1961), de Alain Resnais (e Alain-Robbe Grillet?), onde o movimento corta o movimento, onde a câmera percorre um espaço imutável, isolado (que pode ser em Marienbad, Baden-Salsa, Frederiksbad), entre corredores, salões, portas e corredores, capturando a coexistência de diferentes tempos, sonhos, memórias, projeções e delírios. Mas, sinceramente, depois do ensaio anterior, falar simplesmente sobre travellings se tornaria um tanto repetitivo. Ainda que aqui exista um diferencial muito claro: a câmera se move não apenas de um cômodo para outro, mas o faz, num mesmo plano-sequência, a partir do espaço-momento suspenso de onde o narrador X descreve o ambiente, ações, gestos e encontros diretamente para suas lembranças (ou lembranças-falsas); para seus sonhos (ou sonhos-inventados); para estados mentais ou desejos encobertos e revelados. E durante esse movimento vagaroso, esse mesmo narrador se encontra enquanto personagem X (ou enquanto narrador) dentro de sua própria história, direcionando suas palavras de maneira persuasiva para sua ouvinte/amante A (ela nega, confirma, hesita), reflexiva para si mesmo e assertiva para o espectador. Quando não inverte e mistura todas essas enunciações – o que torna tudo deliciosamente mais ambíguo.

Há uma síntese – numa descontinuidade aparentemente ilógica – onde todas essas formas de contar um encontro passado (ou um encontro passado fictício, projetado) se unem sob a efígie de uma única realidade. E claro que falar em realidade (a maioria falaria numa não-realidade) pode parecer uma contradição diante da experiência da obra Continuar lendo